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blogue do siman

escritor • crítico • diretor de teatro • editor

Carta de amor e despedida

Janeiro 20, 2021

Yes, you will survive. Você sobreviverá a toda essa merda que está acontecendo no mundo e na sua vida, consequentemente, até porque ninguém está muito bem da cabeça. Eu, por exemplo, já perdi as contas de quantas facas atirei pela janela desde o ano passado só pra não me matar. Mas não estou aqui pra falar sobre mim. Mesmo que eu não sobreviva, você sobreviverá e isso é a maior certeza que tenho na vida, da sua indestrutibilidade.

Éramos um espetáculo na cama, nas rodas de conversa sobre política, nas discussões sobre Huxley e Jim Carrey ao som de Chet Baker, sob efeito de cocaína, nas mesas de bar onde passávamos até doze horas rindo e conversando banalidades. Me pergunto — e imagino que você também se pergunte isso — o que fez com que tanta conexão e reciprocidade desaguasse no nosso fim? Como desmoronou fácil a nossa relação!

Com todos os percalços, essa foi pra mim a melhor e mais visceral relação que vivi com alguém. Eu gosto de tudo em você porque gosto de tudo em mim, e com o passar dos meses fomos nos tornando univitelinos, quase siameses. Peguei seu vocabulário e gírias, alguns trejeitos e manias, plagiei textos que você escreveu, me apropriei da sua filosofia descaradamente.

Por que o fim? Por que digladiamos? Por quê, se nos amamos tanto e somos tão parecidos? Eu sei que sou uma pessoa insuportável e que conviver comigo não é fácil, muito menos agradável, eu sei que sou cheio de defeitos, que não sou bonito, que não tenho muito trato, que hora ou outra você me encontra fedendo a cigarro, suado, na calçada tomando cerveja, eu sei que não é fácil ter que fuder com um cacto carentão.

Queria escrever mais coisas mas o álcool acabou.

Mas apesar de tudo, sempre permanecerá algo de você em mim, e sempre algo de mim em você. Ainda temos um longo fim pela frente, e eu estarei do seu lado até o fim do fim.

 

20 de janeiro de 2021, a cinco dias de completarmos 2 meses de solidão compartilhada

 

De: Rubens

Pra: Rubens

Nos tempos de minha adolescência Skylab era subversão

Julho 09, 2020

Antes eu ouvia Skylab baixinho, e aquela realidade me era limitada à vergonha dos fones de ouvido; hoje, já apresentei-o à minha mãe e avó, e ao meu irmão menor de idade, ouço praticamente todos os dias na maior altura pros vizinhos darem notícia. Nos tempos da minha rebeldia adolescente, Skylab era subversão, agora é literatura e sentimento, estirpe. Há muita coisa que um cidadão (cidadão, não! músico formado, melhor do que você!) chamado Rogério Skylab fez por mim durante minha puberdade gay e agora já na vida adulta.

Eu era um rebelde sem causa. Minha causa atual é a beleza. Luto pela beleza em tudo, e luto pela realidade. Há de se ter realidade e beleza pra ser válido, e julgo impossível encontrar-se coisa mais pujante que isso além de duas premissas: Homero e Rogério Skylab. Minha literatura se banha muito na Ilíada e enxuga-se nos discos de Rogério. Meu último livro, por exemplo, Erodisseia, é o argumento perfeito, é a síntese de tudo: um livro de poemas pornográfico-escatológicos gays, em forma de poema épico. São poemas bonitos e longos.

Como maior elogio possível vindo de mim, direciono a Skylab toda a minha inveja — queria ter nascido ele pra inaugurar o tamanho movimento que surgiu através de sua voz, queria ter tido essa importância, esse impacto.

Uma declaração ou Carta aberta de amor

Maio 20, 2020

rubem.jpg

Rubem Leite é, de longe, a pessoa mais importante em minha formação artística. Tudo passa por ele. Tudo o que escrevo, mesmo tão distanciados há tanto, penso sua reação à leitura, imagino os comentários que teceria, somente então decido publicar ou não. Me recordo quando nos conhecemos em maio de 2014, como fomos firmando um laço cada vez mais forte, as discussões ensandecidas do adolescente e seu mestre, as brincadeiras, a amargura que aprendi com ele, como a doçura de olhar tudo com aguda contemplação. Nos tornamos próximos a ponto de acharem que tínhamos um affair, ou que éramos namorados, maridos, pai e filho.

Rubem é o escritor mais importante de Ipatinga, por nunca em momento algum ter deixado de trabalhar sua escrita, por nunca ter deixado de publicar joias raras em seu blogue, mesmo em momentos de crise ou cansaço ou falta de inspiração. Há um cronto seu, “Cinza e vazio”, das coisas mais bonitas que já li na vida; aliás, tudo o que li de Rubem até hoje (e, diga-se de passagem, em 2016 li absolutamente todas as centenas de textos que há em seu blogue pra compilar um livro), tudo o que li de Rubem até hoje é das melhores coisas que já li. Sua genialidade mora na amargura com que descreve a desgraça humana, social, política, mas mora também no bom humor com que elabora personagens fantásticos, vampiros, gatos, cachorros falantes.

Certa feita comparei Rubem a um Balzac ipatinguense (por esta cidade estar em sua literatura como Paris na de Balzac), mas agora tomo o grande ícone da literatura universal como pequeno. Rubem é a única coisa que importa. Rubem é a única coisa que importa na minha vida pessoal, a única coisa que importa na minha carreira de escritor — à minha voz interior, chamo-a Rubem, é ele quem me critica ou apoia, aconselha, sempre, mesmo não sabendo.

A última vez que nos vimos foi há pouco mais de um ano. Também há mais de um ano ocorreu nossa última conversa. Nos falamos muito pouco, não sabemos o que cada qual tem feito com sua vida, mas eu sinto sua companhia, sua presença, eu sinto que ele me ama. Ele está comigo como um deus com seu devoto. Ele, sem saber, continua determinando até hoje tudo o que faço na vida.

o mundo não cabe no meu olhar

Janeiro 15, 2020

WhatsApp Image 2020-01-15 at 11.59.25.jpeg

 

mesmo que me encham os olhos as mais vastas paisagens

o mundo não cabe no meu olhar

 

desperto todos os dias & o único ato poético que sei é olhar pela janela feito uma máquina

admirar as engrenagens do mundo & a paisagem cada vez menos verde dos morros

beber o cinza da rua contemplar o incontemplável

febril ver arder as chamas que consomem o dia a dia

 

como uma máquina pontualmente às cinquitrinta eu abro a cortina já sabendo o que hei de encontrar

& querendo [mas ainda mais temendo] uma novidade qualquer na paisagem rota da rua

 

não sei de nada além da indiferente vizinhança

não conheço outras paragens com tanta ou menor precisão

mas sinto o mundo — sei que ele está

mesmo quando o olhar faz-se pequeno à medida do sentimento

 

 

14 de janeiro de 2020

Segura na mão de deus e vai

Novembro 30, 2019

"Segura na mão de deus e vai", essa, pra mim, é a música que faz a ficha cair, essa música é o choque do contato direto com a morte. Quando se caminha com o féretro pro cemitério, nas pequenas cidades mineiras, entoando essa canção. Meu primeiro contato doloroso com a morte foi através de minha bisavó, Maria Paula de Brito. Passei todo o velório incólume, até meio pálido e abobalhado, mas firme. Quando fecharam o caixão pra subir o morro do cemitério, em Periquito, e começaram a cantar "segura na mão de deus e vai", tive certeza de que não mais a veria. Eu, menino, fui o primeiro a tacar terra sobre seu caixão. E junto com a terra caiu meu pranto. Entrei em pânico. Chorei aos berros. O segundo contato com a morte, ainda mais doloroso, se deu através de meu avô, Nelson Tomaz de Souza, a pessoa que mais amei, e acredito que também fui a que ele mais havia amado. A partir de então, tomei ódio da música. Não consegui chorar durante meses, desde sua morte anunciada (metástase!), até seu túmulo. Permaneci incrédulo. Hoje, logo na manhã de hoje, acordei com essa música ressoando na cabeça. Segura na mão de deus e vai. Me reconciliei. Cantei-a durante toda a manhã com lágrimas nos olhos. Hoje, anos e anos depois, oficialmente, enterrei meu avô. Tinha pavor à ideia de ter um enterro cristão, com cruzes e terços e rezas. Mas a partir de hoje faço questão. Quero ser enterrado com cruzes e terços e rezas. Quero que o coro cante essa música na caminhada até meu túmulo, que será junto do de meus antepassados, em Periquito, no morro, sob o cruzeiro.

 
Ipatinga, 27 de novembro de 2019

ambulância

Outubro 19, 2019

"Criança geopolítica observando o nascimento do novo homem", óleo sobre tela de Salvador Dalí, 1943

 

o poema — que seja uma ambulância

abrindo caminhos entre as multidões [pelo barulho]

anunciando tragédias

que o poema gema estridente

que se afogue em seus berros & que pisque em vermelho-sangue

 

& que o que puder escorrer escorra das veias

que lateje & doa

que quem puder correr corra

que quem não aguentar — que o poema mate!

 

quero o poema suntendo-se no pavor

o poema que não se consola

o poema que grita & que todos param pra ouvi-lo gritar

...

(que ninguém nunca seja indiferente a esse poema)

 

 

ouro preto, 19 de outubro de 2019

bula

Novembro 23, 2018

*

desbravar desbravar & desbravar
 
aos olhos afiar a observação do mundo
ao toque polir a percepção
(um todo)
sentir os malcheirosos becos da cidade & o perfume fúnebre das damas-da-noite
ouvir -- apenas
ensaiar o paladar com o sabor das palavras proferidas
(correr o risco de morrer envenenado)
 
& coragem!
coragem pra ver & ouvir
pra cheirar pra sentir
coragem pra falar (ou gritar ou manter silêncio)
 
*"The nigh cafe", óleo sobre tela de Van Gogh datado de 1888.

mãe

Abril 27, 2018

à minha mãe, cléo

 

mulher, eis aí o teu filho

(...)

filho, eis aí a tua mãe

JOÃO, XIX, 26-7

 

minha mãe contou-me dum sonho que teve

& senti como se tivesse sonhado esse sonho

vi o lago & vi meu pai se afogando enquanto ela contava

mas não me lembro de tê-lo sonhado essa nem em nenhuma outra noite

 

é como se o cordão umbilical ainda nos unisse

& as dores de um fosse ainda as dores do outro

os mesmos sonhos os mesmos medos os mesmos fluidos do corpo

 

minha mãe & eu

-- vi --

somos um só corpo & um só espírito

vi baratas morrendo após um desastre nuclear

Abril 25, 2018

Hieronymus-Bosch-The-Last-Judgement-detail-3-.JPG*

 

sabe o que eu quero?

eu quero é botar meu bloco na rua

chegar no fim disso tudo

& jogar na cara de todos que eu sobrevivi

: resisti ao caos instaurado de forma homérica

zombei da cara da morte & da fome o tempo todo

vi baratas morrendo após um desastre nuclear -- & eu ainda estou aqui

zombando

 

quero poder debochar do fim

mas quero que o fim não seja absoluto pra que hajam ouvidos pro meu deboche ocupar

 

amém

 

*Detalhe de "O último julgamento", oléo sobre painel de Hieronymus Bosch.

Prefácio de Flávia Frazão a "Águas vivas mortas"

Abril 24, 2018

“Mortuus ut vivas vivus moriaris oportet.”

(“Mortos vivos para viver devem morrer.”)

 

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 Ao receber os originais de Água vivas mortas fui tomada de alegria e encantamento. A tarefa de prefaciar ficou ao lado, primeiro à degustação. Poesia precisa ser bebida, com vinho, de preferência.

Sorvi o vinho e Águas vivas mortas com deleite. Como leitora me senti deslumbrada porque vi revelado o mistério do não-revelado. O mar do indivíduo, único e ao mesmo tempo universal.

Em todo o livro há uma mistura do eu com o mar. Tentativa de entendimento e libertação do eu. Um eu que se mescla no outro, no mar e em si mesmo como espelho narcísico.

O jovem poeta e amigo Vinícius Siman fez uma revolução em sua própria poética estético-literária, se assim podemos dizer, fazendo uma análise diacrônica de sua obra. Corpoesia, seu último livro de poesia, já apontava para sua poética sagaz e inteligente. No entanto, percebe-se em autores muito jovens um eu lírico com percepção de mundo ainda relacionado com sua pouca experiência. No caso de Siman, nada que prejudicasse sua qualidade literária, apenas um estreitamento de percepção do mundo e das relações amorosas. Ainda assim uma grande obra. Já em Águas vivas mortas seu olhar está mais apurado e refinado. O então autor-menino aqui se configura como autor-Siman, dono de um novo e amadurecido olhar sobre a realidade do mundo e sobre a realidade amorosa. Mantém com excelência a qualidade de seus versos.

               O título do livro é ao mesmo tempo provocação e mistério. Ele desperta o leitor para múltiplos e possíveis significados. Provocação que faz buscar as conexões semânticas dentro desse vai e vem de ondas que formam o mar textual de Águas vivas mortas. Mistério porque seu sentido está para além do texto, num entre-lugar sugerido, mas alcançado apenas pelo leitor atra-vés de suas próprias inferências.

               A temática é perpassada por diálogos filosóficos, mitológicos, políticos, artísticos, religiosos e outros. Um universo intertextual que passa por discos voadores, bússolas, Dorival Caymmi, Iemanjá, areia, maré, fogo, luz, rachaduras, pescadores, águas vivas e o mar.

Poesia não pode ser apenas emoção, ou estética, ainda menos, só razão. Ela é a arte de dizer além do texto. Expressar o poético indizível. Tocar o inalcançável através da arte com as palavras. A grande chave que abre o universo poético nessa obra é a sensibilidade simeana que toca o intocável, penetra o intangível, e assim cumpre a mais profunda função da arte e da poesia.

Os versos de “Fogo fato”, por exemplo, são belíssimos. Ultrapassam os sentidos comuns. Revelam intuição poética. Um poema se justifica quando ele alcança o não-lugar. O leitor pode entender ou apenas sentir, e ainda assim ter uma compreensão profunda através dos sentidos.

 

{um verme no meio do mar

é mar ou ainda é verme?}

 

amar é a maré de azar do ser?

 

fogo fato: fotorretrato

o mar é fraco

forte é o verme fátuo (p. 33)

 

Quando o leitor alcança esse não-lugar pode chamá-lo de arte, deus, buda, mar ou apenas mistério.

Em “Pedido de socorro” pode-se apreender um diálogo com nosso tempo de agruras políticas e sociais. Já “Discos voadores”, um deboche da sociedade contemporânea, proselitista, ortodoxa que se contrapõe à sensualidade poética de “Amor na praia”. Sêmen do mar, corpos e sexo se conectam numa ressaca:

 

{no exato momento que uma onda se

[quebra na rebentação

& vem lamber seus pés

seu orgasmo mistura-se ao orgasmo do

[mar} (p. 31)

 

Mortos vivos para viver devem morrer. A frase em latim já abarcava a semântica da morte que cede lugar à vida.  Águas vivas mortas me remete a esse ciclo vida-morte, morte-vida. Um no outro, um dando lugar ao outro, numa (co)existência mútua e cíclica. A simbologia se aplica tanto à obra que aponta para o novo, pra vida, a partir da morte (ressignificação) da realidade contemporânea, quanto para a ressignificação e reconstrução do próprio autor, numa nova fase de sua literatura.

E como se estivéssemos para sempre debruçados sobre Águas vivas mortas depois dessa leitura, relembro Drummond em seu verso: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar.”

 

FLÁVIA FRAZÃO, professora e escritora

Ipatinga, fevereiro de 2018

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