“Mortuus ut vivas vivus moriaris oportet.”
(“Mortos vivos para viver devem morrer.”)
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Ao receber os originais de Água vivas mortas fui tomada de alegria e encantamento. A tarefa de prefaciar ficou ao lado, primeiro à degustação. Poesia precisa ser bebida, com vinho, de preferência.
Sorvi o vinho e Águas vivas mortas com deleite. Como leitora me senti deslumbrada porque vi revelado o mistério do não-revelado. O mar do indivíduo, único e ao mesmo tempo universal.
Em todo o livro há uma mistura do eu com o mar. Tentativa de entendimento e libertação do eu. Um eu que se mescla no outro, no mar e em si mesmo como espelho narcísico.
O jovem poeta e amigo Vinícius Siman fez uma revolução em sua própria poética estético-literária, se assim podemos dizer, fazendo uma análise diacrônica de sua obra. Corpoesia, seu último livro de poesia, já apontava para sua poética sagaz e inteligente. No entanto, percebe-se em autores muito jovens um eu lírico com percepção de mundo ainda relacionado com sua pouca experiência. No caso de Siman, nada que prejudicasse sua qualidade literária, apenas um estreitamento de percepção do mundo e das relações amorosas. Ainda assim uma grande obra. Já em Águas vivas mortas seu olhar está mais apurado e refinado. O então autor-menino aqui se configura como autor-Siman, dono de um novo e amadurecido olhar sobre a realidade do mundo e sobre a realidade amorosa. Mantém com excelência a qualidade de seus versos.
O título do livro é ao mesmo tempo provocação e mistério. Ele desperta o leitor para múltiplos e possíveis significados. Provocação que faz buscar as conexões semânticas dentro desse vai e vem de ondas que formam o mar textual de Águas vivas mortas. Mistério porque seu sentido está para além do texto, num entre-lugar sugerido, mas alcançado apenas pelo leitor atra-vés de suas próprias inferências.
A temática é perpassada por diálogos filosóficos, mitológicos, políticos, artísticos, religiosos e outros. Um universo intertextual que passa por discos voadores, bússolas, Dorival Caymmi, Iemanjá, areia, maré, fogo, luz, rachaduras, pescadores, águas vivas e o mar.
Poesia não pode ser apenas emoção, ou estética, ainda menos, só razão. Ela é a arte de dizer além do texto. Expressar o poético indizível. Tocar o inalcançável através da arte com as palavras. A grande chave que abre o universo poético nessa obra é a sensibilidade simeana que toca o intocável, penetra o intangível, e assim cumpre a mais profunda função da arte e da poesia.
Os versos de “Fogo fato”, por exemplo, são belíssimos. Ultrapassam os sentidos comuns. Revelam intuição poética. Um poema se justifica quando ele alcança o não-lugar. O leitor pode entender ou apenas sentir, e ainda assim ter uma compreensão profunda através dos sentidos.
{um verme no meio do mar
é mar ou ainda é verme?}
amar é a maré de azar do ser?
fogo fato: fotorretrato
o mar é fraco
forte é o verme fátuo (p. 33)
Quando o leitor alcança esse não-lugar pode chamá-lo de arte, deus, buda, mar ou apenas mistério.
Em “Pedido de socorro” pode-se apreender um diálogo com nosso tempo de agruras políticas e sociais. Já “Discos voadores”, um deboche da sociedade contemporânea, proselitista, ortodoxa que se contrapõe à sensualidade poética de “Amor na praia”. Sêmen do mar, corpos e sexo se conectam numa ressaca:
{no exato momento que uma onda se
[quebra na rebentação
& vem lamber seus pés
seu orgasmo mistura-se ao orgasmo do
[mar} (p. 31)
Mortos vivos para viver devem morrer. A frase em latim já abarcava a semântica da morte que cede lugar à vida. Águas vivas mortas me remete a esse ciclo vida-morte, morte-vida. Um no outro, um dando lugar ao outro, numa (co)existência mútua e cíclica. A simbologia se aplica tanto à obra que aponta para o novo, pra vida, a partir da morte (ressignificação) da realidade contemporânea, quanto para a ressignificação e reconstrução do próprio autor, numa nova fase de sua literatura.
E como se estivéssemos para sempre debruçados sobre Águas vivas mortas depois dessa leitura, relembro Drummond em seu verso: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar.”
FLÁVIA FRAZÃO, professora e escritora
Ipatinga, fevereiro de 2018