Engole o choro
Janeiro 31, 2018
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“As chaves, as chaves, onde estão as chaves?”, perguntava-se. Encontrou-as no bolso do paletó. Abriu o portão, a porta, abriu a cortina da cozinha pra que um último raio de sol fosse aproveitado. Sentou-se à mesa de seis lugares, aquela mesa que ganhou da mãe quando casou-se e que a ex-esposa queria levar consigo na separação. Mas ela continuava ali, com ele. Naquela mesa, os piores momentos, e os momentos menos piores de sua infância. Naqueles tempos (e ainda hoje), junto com o feijão, engolia o choro.
As ordens do pai ecoaram-lhe por toda a vida. — Era um Kafka!
“Engole o choro”, insistia a voz viva do pai morto, “engole o choro! homem não chora e não se emociona por nada!” Nesse instante, veio-lhe um soluço, que as duras mãos de sua alma amarraram com forte nó na garganta.
Perdera o avô, não chorou; perdera o pai, não chorou; perdera a esposa, não chorou. Estava cansado do trabalho, era quarta-feira. Cada dia mais velho, cada dia mais sozinho. Esquecido pelos que dividem escritório com ele, pelos antigos amigos, pelos entregadores de jornal, por todos.
Seus olhos arderam e coçaram. “Engole o choro”, disse-lhe a voz viva do pai morto. Arregalou os olhos num acesso de raiva.
Que era ele ainda no mundo, além dum peso? Contas atrasadas, pendências no buteco e na padaria, no açougue devia já há anos. Fungou pelo nariz. “Engo…” — matou a voz do pai morto.
Chorou pela primeira vez, simplesmente por ter chegado cansado do trabalho.
Nova Viçosa, Bahia
31 de janeiro de 2018
*Óleo sobre tela de Giovanni Bragolin.