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blogue do siman

escritor • crítico • diretor de teatro • editor

mãe

Abril 27, 2018

à minha mãe, cléo

 

mulher, eis aí o teu filho

(...)

filho, eis aí a tua mãe

JOÃO, XIX, 26-7

 

minha mãe contou-me dum sonho que teve

& senti como se tivesse sonhado esse sonho

vi o lago & vi meu pai se afogando enquanto ela contava

mas não me lembro de tê-lo sonhado essa nem em nenhuma outra noite

 

é como se o cordão umbilical ainda nos unisse

& as dores de um fosse ainda as dores do outro

os mesmos sonhos os mesmos medos os mesmos fluidos do corpo

 

minha mãe & eu

-- vi --

somos um só corpo & um só espírito

vi baratas morrendo após um desastre nuclear

Abril 25, 2018

Hieronymus-Bosch-The-Last-Judgement-detail-3-.JPG*

 

sabe o que eu quero?

eu quero é botar meu bloco na rua

chegar no fim disso tudo

& jogar na cara de todos que eu sobrevivi

: resisti ao caos instaurado de forma homérica

zombei da cara da morte & da fome o tempo todo

vi baratas morrendo após um desastre nuclear -- & eu ainda estou aqui

zombando

 

quero poder debochar do fim

mas quero que o fim não seja absoluto pra que hajam ouvidos pro meu deboche ocupar

 

amém

 

*Detalhe de "O último julgamento", oléo sobre painel de Hieronymus Bosch.

Prefácio de Flávia Frazão a "Águas vivas mortas"

Abril 24, 2018

“Mortuus ut vivas vivus moriaris oportet.”

(“Mortos vivos para viver devem morrer.”)

 

cover_front_big.jpg

 Ao receber os originais de Água vivas mortas fui tomada de alegria e encantamento. A tarefa de prefaciar ficou ao lado, primeiro à degustação. Poesia precisa ser bebida, com vinho, de preferência.

Sorvi o vinho e Águas vivas mortas com deleite. Como leitora me senti deslumbrada porque vi revelado o mistério do não-revelado. O mar do indivíduo, único e ao mesmo tempo universal.

Em todo o livro há uma mistura do eu com o mar. Tentativa de entendimento e libertação do eu. Um eu que se mescla no outro, no mar e em si mesmo como espelho narcísico.

O jovem poeta e amigo Vinícius Siman fez uma revolução em sua própria poética estético-literária, se assim podemos dizer, fazendo uma análise diacrônica de sua obra. Corpoesia, seu último livro de poesia, já apontava para sua poética sagaz e inteligente. No entanto, percebe-se em autores muito jovens um eu lírico com percepção de mundo ainda relacionado com sua pouca experiência. No caso de Siman, nada que prejudicasse sua qualidade literária, apenas um estreitamento de percepção do mundo e das relações amorosas. Ainda assim uma grande obra. Já em Águas vivas mortas seu olhar está mais apurado e refinado. O então autor-menino aqui se configura como autor-Siman, dono de um novo e amadurecido olhar sobre a realidade do mundo e sobre a realidade amorosa. Mantém com excelência a qualidade de seus versos.

               O título do livro é ao mesmo tempo provocação e mistério. Ele desperta o leitor para múltiplos e possíveis significados. Provocação que faz buscar as conexões semânticas dentro desse vai e vem de ondas que formam o mar textual de Águas vivas mortas. Mistério porque seu sentido está para além do texto, num entre-lugar sugerido, mas alcançado apenas pelo leitor atra-vés de suas próprias inferências.

               A temática é perpassada por diálogos filosóficos, mitológicos, políticos, artísticos, religiosos e outros. Um universo intertextual que passa por discos voadores, bússolas, Dorival Caymmi, Iemanjá, areia, maré, fogo, luz, rachaduras, pescadores, águas vivas e o mar.

Poesia não pode ser apenas emoção, ou estética, ainda menos, só razão. Ela é a arte de dizer além do texto. Expressar o poético indizível. Tocar o inalcançável através da arte com as palavras. A grande chave que abre o universo poético nessa obra é a sensibilidade simeana que toca o intocável, penetra o intangível, e assim cumpre a mais profunda função da arte e da poesia.

Os versos de “Fogo fato”, por exemplo, são belíssimos. Ultrapassam os sentidos comuns. Revelam intuição poética. Um poema se justifica quando ele alcança o não-lugar. O leitor pode entender ou apenas sentir, e ainda assim ter uma compreensão profunda através dos sentidos.

 

{um verme no meio do mar

é mar ou ainda é verme?}

 

amar é a maré de azar do ser?

 

fogo fato: fotorretrato

o mar é fraco

forte é o verme fátuo (p. 33)

 

Quando o leitor alcança esse não-lugar pode chamá-lo de arte, deus, buda, mar ou apenas mistério.

Em “Pedido de socorro” pode-se apreender um diálogo com nosso tempo de agruras políticas e sociais. Já “Discos voadores”, um deboche da sociedade contemporânea, proselitista, ortodoxa que se contrapõe à sensualidade poética de “Amor na praia”. Sêmen do mar, corpos e sexo se conectam numa ressaca:

 

{no exato momento que uma onda se

[quebra na rebentação

& vem lamber seus pés

seu orgasmo mistura-se ao orgasmo do

[mar} (p. 31)

 

Mortos vivos para viver devem morrer. A frase em latim já abarcava a semântica da morte que cede lugar à vida.  Águas vivas mortas me remete a esse ciclo vida-morte, morte-vida. Um no outro, um dando lugar ao outro, numa (co)existência mútua e cíclica. A simbologia se aplica tanto à obra que aponta para o novo, pra vida, a partir da morte (ressignificação) da realidade contemporânea, quanto para a ressignificação e reconstrução do próprio autor, numa nova fase de sua literatura.

E como se estivéssemos para sempre debruçados sobre Águas vivas mortas depois dessa leitura, relembro Drummond em seu verso: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar.”

 

FLÁVIA FRAZÃO, professora e escritora

Ipatinga, fevereiro de 2018

com ronal skarabajo

Abril 15, 2018

IMG_20180415_103820939_HDR[1].jpg

Eu, Vitório e Skarabajo, na casa de Rubem. Foto tirada pelo Rubem. 

...

— y por que no sai de ipatinga, essa ciudad poluída, en torno duna fábrica?

— porque eu sou uma árvore de raízes cravadas no chão; sou regado a vida toda com essa chuva ácida que, ao mesmo tempo que me alimenta & refresca, corrói

— faça como yo, sea un nômade, viaje, ande...

— mas você não é como eu; você é um pássaro que voa, voa, voa até se perder na imensidão do céu*

— enton vire um pajaro también

— mas se eu não fosse uma árvore que me sacrificasse nesse chão duro, maltratado, pássaros como você não teriam onde pousar

...

 

* escrevendo, pergunto a skarabajo se devo usar "no céu" ou "na imensidão do céu". "na imensidad del céu", ele diz, "porque el céu es infinito, no tem fim". eu respondo: "não que a gente saiba".

se te encontrar algum dia no meio da rua

Abril 09, 2018

a quem(?)

 

se te encontrar algum dia no meio da rua num semáforo num café

me lembrarei com rapidez presente ou terei de buscar no lixo da memória teus traços pra associá-los a um nome oculto & inalcançável?

terei de procurar a criptografia que detém os seus dados (poros rugas marcas de expressão & todo o resto do corpo que conheci milimetricamente)

ou simplesmente ao vê-lo direi: que saudade!

?

 

imagino que agora

agora mesmo

neste exato momento intacto

se te visse passando não reconheceria pois teu rosto faz-se distante & acho que nem no lixo da memória encontraria tua face vazia

depois de três ou trinta dias devia de achar um detalhe que associaria a alguém que passou por mim & que não reconheci — como uma memória inútil de quando uma folha caiu em cima de mim em 2007

 

mas se eu me esquecer bruscamente de ti

saiba

: tua face não mais surtirá efeitos caducos

não me recordarei por certo da textura da tua boca & de teus beijos

não não farei mais poemas porque já terei me esquecido completamente de quem és

ou serás apenas um homem a mais pisando no mundo aguentando o peso da atmosfera nos ombros

[a coluna curva os olhos baixos & tristes um sorriso vincado de dissabores angústias refletidas na face envelhecida]

serás apenas daqui alguns anos um retrato antigo de mim

uma fotografia que olharei no espelho do passado & não reconhecerei mais como eu

 

algum dia se te encontrar

na rua ou no lixo da memória

ai! chorarei por não (re)conhecê-lo!

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