Das Enchentes de Cloenes
Janeiro 01, 2016
A Maria Cloenes, que me proporcionou um dos melhores momentos da minha vida
Estávamos, Rubem e eu, no ateliê Madame Chita, e fui apresentado a Cloenes, uma pessoa simpaticíssima, e, como disse-me Rubem, que quase não fala, mas quando abre a boca, diz maravilhas. E a arte maravilhosa de Cloenes não é somente nas palavras que diz, mas, principalmente no que sabe fazer melhor: as bonecas Enchentes.
Segundo Cloenes, em sua infância as enchentes eram verdadeiros eventos — sempre o cotidiano, sempre as mesmas coisas aconteciam, mas numa determinada época do ano o rio enchia (quando não transbordava em direção às casas) e a artista, então menina, maravilhada, observava que tudo mudava quando os braços d’água da enchente chegava — o modo de vida era totalmente outro —, mas, tempos depois, tudo se ajeitava, e a única coisa que restava das enchentes eram marcas de barro nas árvores.
As bonecas Enchentes carregam, como marca principal, os braços longos, que alcançam os pés, percorrendo todo o corpo até o chão (e até, em alguns casos, maiores que as pernas). Os braços das Enchentes são águas que atravessam o limite do rio e param na soleira da porta de casa, e são suficientemente grandes pra abraçar as árvores que encontrar pela frente.
Fiquei, realmente, fascinado, comovido com a sensibilidade de Cloenes, que, como pode-se observar, vive e respira a arte; cada milímetro do ser da artista está absolutamente tomado por uma responsabilidade e devoção à arte — o que me deixa boquiaberto.
Cloenes, na sua infância, viveu vários eventos (enchentes) especiais, únicos em todo um ano. A expectativa pra que logo chegassem as águas e transbordassem os rios era extrema.
Emocionado com as enchentes dos rios e as Enchentes bonecas (e, principalmente, com Cloenes, essa enchente de sabedoria), beijo, num gesto todo simbólico, a testa duma boneca, que parece me retribuir não com os olhos (pois não tem), nem com os lábios (pois estes também lhe faltam), nem com um agradecimento vocal, mas com um abraço todo maternal e, portanto, puro. Imagino-me a menina Cloenes, o rio na porta de casa, as lavadeiras acocoradas fazendo seu trabalho, e eu, menina imersa em mundos de pura arte e encanto; sou agora boneca de pano, e mamãe me chama pro almoço. Algum tempo depois, as árvores observam, na beira do rio, as marcas nelas deixadas pela enchente. Eu, novamente Siman, vejo-me árvore (e árvore sou) marcada pelos longos braços de Enchente.