Marcelo, sonhador e mártir
Março 01, 2018
Marcelo, 19 anos, trabalha com burocracia.
Passa o dia todo no escritório, suportando o mundo burocrático em suas costas. Mas Marcelo é sábio: pra compensar tanto trabalho, tantos desaforos, tantas irritações passadas nas doze horas em frente ao computador, pra compensar tudo isso, entrega-se aos pequenos prazeres.
Era um dia como qualquer outro. Logo que chegou no escritório, pensou que, no fim do expediente, compraria um doce pra tirar o amargor que fica na língua quando a gente engole muito sapo. Estabeleceu a ideia fixa do doce. Imaginava a maravilha do brigadeiro branco dentro duma casca de chocolate crocante e, junto ao brigadeiro, dois morangos suculentos, vermelhos, doces.
“Fim de mês”, pensou consigo, “abro mão da passagem pra comer o doce! Vou pra casa a pé.” Sorriu, quase feliz.
As horas escorriam grossas dos ponteiros do relógio na parede cinza. Marcelo sonhava com o doce; pra distrair-se da ânsia que estava prestes a virar obsessão, passou a sonhar com uma cerveja na sexta, depois do trabalho. E assim foi levando a tarde.
17h23. Marcelo anseia extremamente pelas 18h. Entra uma senhora no escritório: “Moço, sou daqui da cidade vizinha, vim aqui trazer minha irmã que tá com câncer e não tenho dinheiro pra voltar pra casa. Faltam só dois reais pra completar o preço da passagem.”
Sem pensar, Marcelo pega seus dois reais e dá à senhora, que o agradece quase às lágrimas, beijando suas mãos. A porta bate às costas da senhora. Marcelo entende que não teria dinheiro nem pra passagem, nem pro doce. O tempo passa rápido. Percorre os quatro quilômetros de distância do serviço à sua casa.
Toma água. Toma banho. Toma mais um gole d’água, fuma e dorme. Em seus sonhos, a esperança duma cerveja na sexta... depois do expediente.