O vestido
Março 05, 2018
Após tantos dissabores, M. saiu sem destino. Caminhou olhando nos olhos dos transeuntes, encarando-os com melancólica seriedade, semblante caído. M. vê-se numa vitrina de loja — seu reflexo, perfeitamente colocado num vestido de festa, o pescoço longo saltando do decote, dando rosto ao manequim sem cabeça.
“O que eu quero?”, perguntou-se. “Eu quero andar sem roupa, mas também quero esse vestido, ver-me nele, sentir a textura do tecido no meu corpo; é isso que eu quero.”
Arrebentou o vidro da loja, o alarme tocou. Arrancou o vestido do manequim como se ele fosse capaz de travar luta. Arrancou toda a roupa, totalmente em pelo. Um vento frio correu em sua espinha. Colocou o vestido.
Como se veria c’o vestido, se quebrou o vidro da loja?
Um atordoamento lógico rompeu do estômago de M. Foi ao chão, flutuando, flutuando o vestido, os cabelos arrancados de pavor flutuando. E morreu após tantos dissabores.