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blogue do siman

escritor • crítico • diretor de teatro • editor

Força do hábito

Março 22, 2018

 

...

— Me diga um hábito estranho que você tem tido ultimamen...

— Tenho chorado às terças.

— Como, chorado às terças?

— Fico a semana inteira segurando choro, aí chega terça-feira e choro.

— Por que na terça?

— Não sei. Fiquei muito tempo na vida sem chorar. Voltei a chorar numa terça. Desde então, não quero dar o braço à torcer e chorar todo dia, mas também não quero mais ficar tanto tempo sem chorar...

— Diferente...

— Diferente não; estranho.

— É... e como funciona? Você acorda e diz "hoje é terça" e chora?

— Não. Eu acordo, bebo meu café, trabalho e vou cultivando tristezas que nos outros dias prefiro ignorar. No ônibus de volta pra casa, às 18h, ouço uma sinfonia triste. Quando chego em casa, sento à mesa, janto sozinho, bebo minha cerveja e choro.

— O momento exato do choro tem trilha sonora específica?

— Não necessariamente.

— E...?

— E é assim. Choro toda santa terça-feira.

— Tem algum motivo concreto pra chorar?

— Ninguém chorar por motivos concretos.

...

O vestido

Março 05, 2018

Após tantos dissabores, M. saiu sem destino. Caminhou olhando nos olhos dos transeuntes, encarando-os com melancólica seriedade, semblante caído. M. vê-se numa vitrina de loja — seu reflexo, perfeitamente colocado num vestido de festa, o pescoço longo saltando do decote, dando rosto ao manequim sem cabeça.

“O que eu quero?”, perguntou-se. “Eu quero andar sem roupa, mas também quero esse vestido, ver-me nele, sentir a textura do tecido no meu corpo; é isso que eu quero.”

Arrebentou o vidro da loja, o alarme tocou. Arrancou o vestido do manequim como se ele fosse capaz de travar luta. Arrancou toda a roupa, totalmente em pelo. Um vento frio correu em sua espinha. Colocou o vestido.

Como se veria c’o vestido, se quebrou o vidro da loja?

Um atordoamento lógico rompeu do estômago de M. Foi ao chão, flutuando, flutuando o vestido, os cabelos arrancados de pavor flutuando. E morreu após tantos dissabores.

Marcelo, sonhador e mártir

Março 01, 2018

Marcelo, 19 anos, trabalha com burocracia.

Passa o dia todo no escritório, suportando o mundo burocrático em suas costas. Mas Marcelo é sábio: pra compensar tanto trabalho, tantos desaforos, tantas irritações passadas nas doze horas em frente ao computador, pra compensar tudo isso, entrega-se aos pequenos prazeres.

Era um dia como qualquer outro. Logo que chegou no escritório, pensou que, no fim do expediente, compraria um doce pra tirar o amargor que fica na língua quando a gente engole muito sapo. Estabeleceu a ideia fixa do doce. Imaginava a maravilha do brigadeiro branco dentro duma casca de chocolate crocante e, junto ao brigadeiro, dois morangos suculentos, vermelhos, doces.

“Fim de mês”, pensou consigo, “abro mão da passagem pra comer o doce! Vou pra casa a pé.” Sorriu, quase feliz.

As horas escorriam grossas dos ponteiros do relógio na parede cinza. Marcelo sonhava com o doce; pra distrair-se da ânsia que estava prestes a virar obsessão, passou a sonhar com uma cerveja na sexta, depois do trabalho. E assim foi levando a tarde.

17h23. Marcelo anseia extremamente pelas 18h. Entra uma senhora no escritório: “Moço, sou daqui da cidade vizinha, vim aqui trazer minha irmã que tá com câncer e não tenho dinheiro pra voltar pra casa. Faltam só dois reais pra completar o preço da passagem.”

Sem pensar, Marcelo pega seus dois reais e dá à senhora, que o agradece quase às lágrimas, beijando suas mãos. A porta bate às costas da senhora. Marcelo entende que não teria dinheiro nem pra passagem, nem pro doce. O tempo passa rápido. Percorre os quatro quilômetros de distância do serviço à sua casa.

Toma água. Toma banho. Toma mais um gole d’água, fuma e dorme. Em seus sonhos, a esperança duma cerveja na sexta... depois do expediente.

Engole o choro

Janeiro 31, 2018

*

 

“As chaves, as chaves, onde estão as chaves?”, perguntava-se. Encontrou-as no bolso do paletó. Abriu o portão, a porta, abriu a cortina da cozinha pra que um último raio de sol fosse aproveitado. Sentou-se à mesa de seis lugares, aquela mesa que ganhou da mãe quando casou-se e que a ex-esposa queria levar consigo na separação. Mas ela continuava ali, com ele. Naquela mesa, os piores momentos, e os momentos menos piores de sua infância. Naqueles tempos (e ainda hoje), junto com o feijão, engolia o choro.

As ordens do pai ecoaram-lhe por toda a vida. — Era um Kafka!

“Engole o choro”, insistia a voz viva do pai morto, “engole o choro! homem não chora e não se emociona por nada!” Nesse instante, veio-lhe um soluço, que as duras mãos de sua alma amarraram com forte nó na garganta.

Perdera o avô, não chorou; perdera o pai, não chorou; perdera a esposa, não chorou. Estava cansado do trabalho, era quarta-feira. Cada dia mais velho, cada dia mais sozinho. Esquecido pelos que dividem escritório com ele, pelos antigos amigos, pelos entregadores de jornal, por todos.

Seus olhos arderam e coçaram. “Engole o choro”, disse-lhe a voz viva do pai morto. Arregalou os olhos num acesso de raiva.

Que era ele ainda no mundo, além dum peso? Contas atrasadas, pendências no buteco e na padaria, no açougue devia já há anos. Fungou pelo nariz. “Engo…” — matou a voz do pai morto.

Chorou pela primeira vez, simplesmente por ter chegado cansado do trabalho.

 

Nova Viçosa, Bahia

31 de janeiro de 2018

 

*Óleo sobre tela de Giovanni Bragolin.

uma triste história de amor

Junho 23, 2016

 

lucas almeida e jorge souza tinham um affair de cerca de sete meses. viam-se semanalmente aos sábados. entregavam-se, amavam-se, sentiam-se na mesma cama do mesmo quarto do mesmo motel. naquele sábado, que até então tinha tudo pra ser feliz, lucas deu a triste notícia: estava noivo de priscila araújo. amaram como nunca naquela despedida. envolveram-se, entregaram-se, sentiram-se e dormiram pesadamente, como nunca — já que sempre que estavam juntos dormiam leves e despreocupados (e é bom lembrar que os dois sofriam de insônia). de manhã, na hora de ir embora, apertaram-se as mãos sem dizer palavra. lucas foi. e jorge suicidou-se, enquanto o cheiro do homem que amava ainda estava em seu corpo

crônica escandalosa e estridente - i

Junho 15, 2016

 

sete e meia da noite. passo pelo pequeno bosque que antecede o parque ipanema. no começo do bosque, um jovem com a camisa erguida exibindo sua barriga definida, acompanhado por um homem alto e gordo e negro, começa a caminhar em minha direção quando me vê, e o alto, gordo e negro o acompanha. vão me pedir cigarros, penso; mas passam por mim, desconfiados, sem dizer palavra. olho pro céu: nuvens densas tentam cobrir a lua crescente quando, no meio do bosquezinho, vejo três homens conversando. um negro, um amorenado e um branco com um capacete na mão. o negro diz: “...ele tem um piru delicioso — quando aquilo escorrega nos meus lábios!...”. não presto atenção no resto. olho pro céu. as nuvens correm, tentando esconder a lua, mas não conseguem porque têm falhas; e a lua prevalece. na entrada do parque ipanema, um rapaz negro me pede um cigarro. dou-lhe o maço, não sei porquê. entro no parque. gaivotas escandalosas irritam-me com seus gritos estridentes; e passam pela lua tentando fazer o que as densas nuvens cinzentas não conseguiram. lelekes ouvem fanque em volume alto, mais escandaloso e estridente que os gritos das gaivotas. velhos e mulheres e jovens correm freneticamente, afobadamente, desesperadamente. oito horas da noite. sento-me num banco qualquer, mas logo levanto, pois sinto fome de fumaça. vou às barracas. nenhuma tem cigarro. volto. o banco onde estava sentado há pouco está ocupado. sento na beirada, distante do jovem negro que fuma o último cigarro do maço que lhe dei. e me diz: “quando você for a valadares a gente se tromba”, levanta-se e sai fumando meu alimento. mas o meu combustível me aguarda na barraca da tia lúcia: uma dose de remédio amarelo e líquido. tomo. pago. motos com policiais passam num vaivém desenfreado (frenético, afobado, desesperado...). luzes vermelhas piscam por sobre as motos alegóricas. e a radiopatrulha emite comandos, mais escandalosa e estridente que o fanque. e os postes com suas lâmpadas esféricas refletem a luz da lua, agora tampada pela insistência das nuvens, das gaivotas, do fanque, da radiopatrulha, da fumaça, dos cigarros e da pederastia mais escandalosa e estridente que as radiopatrulhas. e

 

(continua...)

pietà

Maio 09, 2016

Morreu no colo da mãe

Na canseira da demência

Morreu sem vela, só lágrimas

Daquela triste presença

NENA DE CASTROPietá

 

...e no banco do brazil, uma mulher sentada no chão — à porta —, com as pernas cruzadas, uma criança no colo que risca besteiras num papel qualquer. “me dá uma ajudinha, pelo amor de deus”, pede, choramingando, “me dá uma ajudinha, pelo amor de deus”. todos passam e dizem que não têm dinheiro, mesmo contando bolos cheios após terem saído do caixa eletrônico. uma mulher sentada no chão, com uma criança brincando com um lápis e um pedaço qualquer de papel — desenhando maravilhas — em seu colo, implora, chorando “uma ajudinha pra matar a fome do meu filho, pelo amor de deus”. pelo amor de deus. pelo amor de deus. pelo amor de deus. PELO AMOR DE DEUS. e ela talvez tenha se acostumado a todos os que viram a cara e não respondem nada, e aos que respondem somente “não tenho” “não posso” “não...”. ela para de pedir dinheiro. agora pede comida. comida pro filho. (“não tenho” “não posso” “não...”.) a mulher, sentada no chão, à porta do banco do brazil, chora por seu filh(crist)o morto

                                                                de fome

memalukan ou chaos ou lanet deli

Maio 04, 2016

 

Ele me considera um homem boníssimo, de qualquer modo um homem ingênuo, no fundo sensatíssimo, um homem de boa vontade, um suíço.

MAX FRISCH, Stiller

 

, enquanto isso, num lugar qualquer, pessoas quaisquer fazem festas sem motivo, e bebem e trepam e fumam maconha sem limites. “a pederastia rola solta em locais como este!”, exclama jorge, que não sei se é de fato jorge porque é só mais um qualquer; enquanto putas e travestis deleitam-se nas moedas, os homens deleitam-se na orgia com seus respectivos pares ou trios ou grupos de mulheres e travestis, enquanto os cafetões observam, atônitos, enquanto uma música estranha começa a tocar no bar ao lado, enquanto os bêbados bebem e fumam cigarros sem limites, e os cantores esganiçam uma versão lusófona de “aline” que jamais ouvira antes (“e eu chamei, chamei/ aline! estou aqui/ e eu chorei, chorei...”) e eu passo e passo e passo enquanto aquilo tudo acontece eu passo, e não sei se na verdade jorge era jorge, como antes disse — como não sei se eu, na verdade, sou eu —, só foi o primeiro nome que me veio à cabeça quando ouvi sua voz e quase vi seu rosto pelas frestas de um lugar qualquer e quando ele me

as terras do viajante

Abril 23, 2016

 

esta é a história de um viajante que sonhava percorrer todo o mundo e pegar um punhado de terra de cada cantinho do planeta, e, depois de ter visitado todos os lugares que há, juntar todas as terras e fazer um globo de argila (como os que vemos nas aulas de geografia, só que de argila) que não seria habitado nem com guerra, nem com paz

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