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blogue do siman

escritor • crítico • diretor de teatro • editor

o mundo não cabe no meu olhar

Janeiro 15, 2020

WhatsApp Image 2020-01-15 at 11.59.25.jpeg

 

mesmo que me encham os olhos as mais vastas paisagens

o mundo não cabe no meu olhar

 

desperto todos os dias & o único ato poético que sei é olhar pela janela feito uma máquina

admirar as engrenagens do mundo & a paisagem cada vez menos verde dos morros

beber o cinza da rua contemplar o incontemplável

febril ver arder as chamas que consomem o dia a dia

 

como uma máquina pontualmente às cinquitrinta eu abro a cortina já sabendo o que hei de encontrar

& querendo [mas ainda mais temendo] uma novidade qualquer na paisagem rota da rua

 

não sei de nada além da indiferente vizinhança

não conheço outras paragens com tanta ou menor precisão

mas sinto o mundo — sei que ele está

mesmo quando o olhar faz-se pequeno à medida do sentimento

 

 

14 de janeiro de 2020

ambulância

Outubro 19, 2019

"Criança geopolítica observando o nascimento do novo homem", óleo sobre tela de Salvador Dalí, 1943

 

o poema — que seja uma ambulância

abrindo caminhos entre as multidões [pelo barulho]

anunciando tragédias

que o poema gema estridente

que se afogue em seus berros & que pisque em vermelho-sangue

 

& que o que puder escorrer escorra das veias

que lateje & doa

que quem puder correr corra

que quem não aguentar — que o poema mate!

 

quero o poema suntendo-se no pavor

o poema que não se consola

o poema que grita & que todos param pra ouvi-lo gritar

...

(que ninguém nunca seja indiferente a esse poema)

 

 

ouro preto, 19 de outubro de 2019

bula

Novembro 23, 2018

*

desbravar desbravar & desbravar
 
aos olhos afiar a observação do mundo
ao toque polir a percepção
(um todo)
sentir os malcheirosos becos da cidade & o perfume fúnebre das damas-da-noite
ouvir -- apenas
ensaiar o paladar com o sabor das palavras proferidas
(correr o risco de morrer envenenado)
 
& coragem!
coragem pra ver & ouvir
pra cheirar pra sentir
coragem pra falar (ou gritar ou manter silêncio)
 
*"The nigh cafe", óleo sobre tela de Van Gogh datado de 1888.

mãe

Abril 27, 2018

à minha mãe, cléo

 

mulher, eis aí o teu filho

(...)

filho, eis aí a tua mãe

JOÃO, XIX, 26-7

 

minha mãe contou-me dum sonho que teve

& senti como se tivesse sonhado esse sonho

vi o lago & vi meu pai se afogando enquanto ela contava

mas não me lembro de tê-lo sonhado essa nem em nenhuma outra noite

 

é como se o cordão umbilical ainda nos unisse

& as dores de um fosse ainda as dores do outro

os mesmos sonhos os mesmos medos os mesmos fluidos do corpo

 

minha mãe & eu

-- vi --

somos um só corpo & um só espírito

vi baratas morrendo após um desastre nuclear

Abril 25, 2018

Hieronymus-Bosch-The-Last-Judgement-detail-3-.JPG*

 

sabe o que eu quero?

eu quero é botar meu bloco na rua

chegar no fim disso tudo

& jogar na cara de todos que eu sobrevivi

: resisti ao caos instaurado de forma homérica

zombei da cara da morte & da fome o tempo todo

vi baratas morrendo após um desastre nuclear -- & eu ainda estou aqui

zombando

 

quero poder debochar do fim

mas quero que o fim não seja absoluto pra que hajam ouvidos pro meu deboche ocupar

 

amém

 

*Detalhe de "O último julgamento", oléo sobre painel de Hieronymus Bosch.

se te encontrar algum dia no meio da rua

Abril 09, 2018

a quem(?)

 

se te encontrar algum dia no meio da rua num semáforo num café

me lembrarei com rapidez presente ou terei de buscar no lixo da memória teus traços pra associá-los a um nome oculto & inalcançável?

terei de procurar a criptografia que detém os seus dados (poros rugas marcas de expressão & todo o resto do corpo que conheci milimetricamente)

ou simplesmente ao vê-lo direi: que saudade!

?

 

imagino que agora

agora mesmo

neste exato momento intacto

se te visse passando não reconheceria pois teu rosto faz-se distante & acho que nem no lixo da memória encontraria tua face vazia

depois de três ou trinta dias devia de achar um detalhe que associaria a alguém que passou por mim & que não reconheci — como uma memória inútil de quando uma folha caiu em cima de mim em 2007

 

mas se eu me esquecer bruscamente de ti

saiba

: tua face não mais surtirá efeitos caducos

não me recordarei por certo da textura da tua boca & de teus beijos

não não farei mais poemas porque já terei me esquecido completamente de quem és

ou serás apenas um homem a mais pisando no mundo aguentando o peso da atmosfera nos ombros

[a coluna curva os olhos baixos & tristes um sorriso vincado de dissabores angústias refletidas na face envelhecida]

serás apenas daqui alguns anos um retrato antigo de mim

uma fotografia que olharei no espelho do passado & não reconhecerei mais como eu

 

algum dia se te encontrar

na rua ou no lixo da memória

ai! chorarei por não (re)conhecê-lo!

vultos

Março 28, 2018

*

 

O ódio é o prazer mais duradouro. Os homens amam com pressa, mas odeiam com calma.

LORD BYRONDon Juan

 

até quando passam devagar as pessoas passam rápido demais

 

uma definição antropológica-psicorreligiosa pra raça

: vultos

vultos teimosos & arrogantes

 

gente é isso -- esse vulto perdido numa multidão de vultos

 

gente

toda essa altivez sem cabimento todo esse amargor na língua toda essa pressa

 

a gente corre co’a enchente sem saber aonde vai dar

& a gente pensa que correndo chega mais rápido mas não chega

fechar os olhos & respirar

ver as gentes passando tão rápidas em seus passos calmos

admirar a desgraça das gentes admirando a desgraça das gentes (…)

 

as cidades são cavernas platônicas

as sombras não são signos falsos

as sombras somos nós

nós & essa nossa pressa toda esse vulto de gente pedaço do inferno

 

Óleo sobre tela de Toulouse-Lautrec.

girvany, poeta

Março 27, 2018

ao meu mestre, girvany de morais

em seus anais

em 27 de março de 2018

 

os versos do poeta me abraçam

[um abraço da morte que asfixia -- uma serpente triturando meus ossos]

os versos do poeta me perfuram & perfumam (como o sândalo que perfuma o machado que o fere*)

o poeta é todo de neurônios virados

gosta de me fazer sofrer sobre dragões vociferendo seus detritos**

arrebentando minha cara no chão duro

 

mas o poeta é meu amigo

abraça-me com calor & afeto

chama-me bixinha beija-me a face conversa banalidades

 

vejam

: esse que me fere & arranca meu peito co'a fria faca de seus versos

acarinha-me

compreende-me

& me suporta até altas horas da madrugada quando me falta o sono

 

vejam

: esse poema não é nada

é um pedido apenas (mas não fosse um pedido não seria nada!) --

peço aos deuses que as mãos do poeta

continuem me matando matando sem pena até o fim dos tempos

a ferrugem da faca há de ser meu remédio!

 

* Fala atribuída a Buda.

** De um poema de Girvany, que acompanhei o processo de criação.

tutorial pra novos escritores

Março 23, 2018

*

 

tabula rasa

o pensamento vazio é repleto de subpensamentos

 

há de se destrinchar o pensamento

há de se futucar o chão duro do hiato até achar raiz

há de se fazer com que a raiz vigore

 

um papel em branco é o universo exigindo uma resposta à vida

preencha o papel como se preenchesse um formulário de pesquisa do ibope

 

peça inspirações divinas a deuses inexistentes

ore em línguas estranhas procurando palavras sonoras

(que caibam no poema)

comungue o corpo & sangue de dionísio & vomite esse vinho amargo

beba uísque fume ervas coma cogumelos

sempre é necessário um empurrão um estopim pra parir o poema

; ou apenas assista ao pôr do sol

 

chore até engasgar

ouça músicas depressivas suicide-se volte à vida & escreva

 

 

tabula funda

leia leia & leia

deleite-se em proust flaubert &balzac

machado de assis é bom pra cachorro

experimente os russos que são bons em tudo que fazem!

 

tire zaratustra pra dançar

 

leia leia & leia

kafka guimarães rosa wilde

gullar oswad hilda pessoa

 

manche seus livros de café & rabiscos à lápis

ignore os post-its & abuse do marca-texto rosa fluorescente

 

há de se ler

há de se ler ler

& ler

 

no fundo d’alma vai restar a lembrança de homero em cada livro lido

 

{segredo pra restar a lembrança de homero em cada poema escrito:}

escreva ao menos cinco ilíadas por dia

sem contraindicações

escreva jogue fora ou publique mas escreva depois

[& só depois]

duma dose de lsd (ler sem descanço)

 

 

*Óleo sobre tela de Arthur Berzinsh.

churrasco em sexta da paixão

Março 20, 2018

*

 

 

quarta de cinzas uma cruz de cinza na testa dantes purpurinada

 

até ontem faziam-se festas pelas ruas

hoje o mundo está todo mais triste por quarenta dias & quarenta noites

& eu bebo sozinho querendo a companhia do meu irmão

 

a quaresma é fogo ardendo assando peixes podres

pobres são porcos que mastigam as pérolas da religião

: não não quero obrigado

prefiro estar bêbado de uísque & sofrimento na semana santa

do que fazer jorrar o sangue de cristo & amá-lo

[amo-o distante sem querer proximidades

amo-o a ponto de não querer matá-lo como fazem por ali]

 

churrasquinho de gato em sexta da paixão

os bares fechados as tabacarias fechadas

as lanchonetes as lojas as pernas fechadas

na sexta santa

 

: não quero não obrigado

não quero sudários sangrentos

não quero tragédias encenações cruzes mal pregadas sangue falso de groselha ou tinta-guache

quero ser minha própria comunhão comer meu corpo beber meu sangue

eu-caristia

 

& não há nada o que celebrar na páscoa

estamos em 2018

a única festa que me seduz é a boemia

a herética boemia dos solitários

 

*Obra gráfica de Arthur Berzinsh.

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